quarta-feira, 30 de maio de 2007

PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO: HISTORICIZANDO CONCEITOS PARA DESLOCAR PRÁTICAS




* Sérgio Augusto Freire de Souza


Introdução

Este texto tem por objetivo discutir o Projeto Político-Pedagógico (PPP) a partir de uma determinada visão conceitual dos termos que compõem o sintagma. Para isso, iniciaremos com uma breve introdução quanto à inserção do PPP no espaço escolar. Depois, buscaremos definir conceitualmente o recorte semântico atribuído aos termos Projeto, Político e Pedagógico. Sustentamos que a compreensão conceitual desses termos vai direcionar o olhar sobre o PPP e consequentemente a sua função na escola, pois a forma de ver o objeto define o objeto. Em seguida, finalizaremos abordando o que se compreende por PPP a partir da inter-relação semântica dos termos.


PPP e a construção de sua presença na escola brasileira

Vasconcellos (2002) nos apresenta uma breve contextualização do surgimento do PPP como preocupação na escola brasileira. Diz esse autor que a escola, após receber a crítica de ser Aparelho Ideológico de Estado (cf. Althusser 1974) e de ser reprodutora do status quo (cf. Bourdieu 1987) nos anos 70, na esteira do pensamento estruturalista, começa, na década seguinte, a ser reconhecida como um “importante espaço na concretização das políticas educativas, deixando de ser mero prolongamento da administração central” (Vasconcellos op. cit., p. 16). Entre o macrossistema e a prática da sala de aula impõe-se considerar a dimensão intermediária da escola, vista então como uma organização social inserida num dado contexto local, com suas especificidades, que deviam ser entendidas e transformadas em projeto educativo.
Contemporaneamente a isso, diz o autor, surgiram novas concepções de planejamento. Essas concepções levaram à incapacidade da antiga filosofia da escola e do tradicional regimento escolar de darem conta da nova complexidade que se apresentava. É nesse contexto que o Projeto Político-Pedagógico vai surgindo e se afirmando como uma necessidade para os educadores e instituições de ensino.
No entanto, uma pergunta antecede: de que Projeto Político-Pedagógico estamos falando? A linguagem não é monossêmica. Assim, entendemos ser fundamental fazer um necessário recuo e compreender que a linguagem não é transparente nem biunívoca na relação palavra-significado. Como diz Pêcheux “[A]s palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas (...) nas quais essas posições se inscrevem (1988, p.160).
Com o olhar lingüístico, então, buscamos desnaturalizar a linguagem e dizer que o sintagma Projeto Político-Pedagógico pode abarcar uma série de sentidos e compreensões. Cada uma dessas compreensões é fundamentada num conjunto de elementos epistemológicos em relação à educação, com compreensões distintas e até diametralmente opostas.
Assim, buscaremos a seguir circunscrever e evidenciar a construção semântica na qual nos inserimos quando fazemos uso do sintagma PPP. Não temos, em absoluto, a pretensão nem o objetivo de apresentar o modelo padrão do que deve ser o PPP, mas um esboço filosófico do que queremos que seja um PPP filiado a determinadas compreensões dos elementos presentes na sua elaboração. Isso não significa direcionar verticalmente uma receita, pois as grandes receitas não nos interessam mais (Lyotard 2000), mas apresentar um papel diretivo na concepção freireana, ou seja, um papel que possibilite a reflexão e problematização sobre a intimidade da existência de um objeto (o PPP), com autoridade sem autoritarismo e liberdade sem licenciosidade (cf. Freire 1999). Acompanhamos a crítica de Vasconcellos (op.cit.) quando diz que em nome de não serem diretivos, e fundamentados numa pseudo-democracia, muitos acabam se omitindo em relação a questões básicas que os educadores se colocam a partir de seu cotidiano.


Projeto Político-Pedagógico: Construindo a historicidade dos termos

Comecemos nossa delimitação conceitual. O que é Projeto? O que se entende por Político? Qual a concepção de Pedagógico?


Projeto

A etimologia não é o único lugar para se começar, mas é um lugar. Segundo o honesto Houaiss, projeto deriva de projicere, palavra latina que significa “lançar para frente, estender”. Daqui, apreende-se que um projeto trata de algo futuro, com base no presente. É a extensão do que se tem em alguma direção. Elaborar um projeto é, antes de qualquer coisa, contribuir para a solução de problemas, transformando idéias em ações.
Ao assim definir projeto, definimos também o escopo de um projeto. Partimos então para uma definição operacional: Projeto é um empreendimento planejado que consiste num conjunto de atividades inter-relacionadas e coordenadas, com o fim de alcançar objetivos específicos considerando os limites diagnosticados num tempo presente para que possam ser ampliados num tempo futuro através da transformação de idéias fundamentadas na análise coletiva em ações procedimentais que modifiquem uma realidade.
Essa compreensão traz embutida em si uma outra questão. Muitos dos agentes envolvidos no processo educacional alegam que as dificuldades da dura realidade do cotidiano escolar não lhes permitem avançar em discussões como a do PPP. Com isso, assumem a idéia de um PPP como algo secundário, um “a mais” às suas já diversas atribuições. “Não há tempo para elaborar um PPP”. Ponto. Essa linha de raciocínio é contraditória e falaciosa se utilizarmos como referencial nossa definição operacional de projeto. A realidade que envolve as dificuldades do cotidiano escolar só será transformada se um projeto que busca a alteração da realidade for implementado. Sem isso, imobiliza-se e cristaliza-se o estado de coisas que torna a escola em uma máquina de funcionamento inercial e os professores em engrenagens automatizadas que ano a ano repetem a mesma prática. Através de um PPP podemos re-significar a ação de todos os sujeitos da escola, modificando, assim, sua realidade.
Um projeto nasce de uma problematização. É preciso haver uma motivação para a elaboração de um projeto. Um PPP nasce, então, do desejo de alterar o que angustia. Como a escola é um espaço de uma pluralidade subjetiva, é necessário que todos os agentes envolvidos sintam o desejo de alteração e o historicizem. Há uma acomodação inercial que precisa ser quebrada através do desejo de mudança. Thurler afirma que a mudança dentro do estabelecimento escolar, no entanto, só é possível se ela, para os atores, tiver mais significados do que o status quo. E acrescenta: “novas práticas não podem ser consideradas se parecem incompatíveis com a organização e a divisão do trabalho estabelecido, se esta última serve aos interesses da maioria dos atores” (2001, p.26).
Falas como “reconhecemos a importância do PPP, mas não tomamos uma decisão para a construção do mesmo”, “enquanto a Secretaria não desenvolver o seu PPP de nada adiantará falar de melhorias para educação” ou “houve muitas mudanças, não deu tempo para se pensar no PPP” são índices discursivos da falta do desejo de mudar ou do desejo de não mudar. Tomando emprestado da psicanálise a explicação, Freud (1976) afirma que quando não se trata de um desejo aceitável, preferimos esquecê-lo. Esse esquecimento será descrito como conseqüência de um mecanismo chamado “recalque”. O desejo recalcado, por sua vez, permanece em algum lugar exercendo seus efeitos, assombrando o sujeito. Em outras palavras: o desejo recalcado de não-mudar fala por meio de práticas de resistência inconscientes que se manifestam em falas da impossibilidade pelas dificuldades existentes ou imaginárias ou através do apagamento daquilo a que resistimos.
Essa relação de desejo surge fundamentalmente pela falta coletiva. E aqui fazemos a ponte para falarmos do conceito de Político.


Político

Primeiramente, partimos da discussão e de um posicionamento quanto à necessidade ou não do termo político no sintagma Projeto Político-Pedagógico. Alguns educadores consideram a presença do termo uma redundância alegando que todo processo pedagógico é político. O uso da linguagem nunca é inocente e nunca tanto faz. Como há correntes que vêem o pedagógico atrelado à ausência do político ou ao seu espaço reduzido, optamos por evidenciar pressupostos.
Partimos novamente da etimologia. Político vem do grego polis, “um estado ou sociedade caracterizado por um senso de comunidade”. Novamente daqui circunscrevemos nossa compreensão para a presença do termo político no sintagma PPP.
Político é algo que está fundamentalmente ligado ao bem-estar da comunidade. Isso pressupõe a sobreposição do direito coletivo sobre o direito individual. Ponto um.
Além disso, essa compreensão do social superposto ao individual leva à necessária compreensão de que um grupo organizado, uma sociedade, tem regras. Regras pressupõem limites e limites pressupõem respeito aos espaços coletivos de discussão da sociedade e à organização do sistema social. Ponto dois.
Assim, nas operacionalizações e sistematizações da discussão de um PPP é necessário que se definam os limites das discussões e as competências de cada participante ou grupo de participantes para que não haja apropriação indébita do fórum político-pedagógico por fórum político-partidário.
Inevitavelmente concepções valorativas de cunho ideológico-partidário far-se-ão presentes porque fazem parte da própria identidade do sujeito de uma sociedade de direito, aparecendo por meio de ações expressas ou de omissões gritantes. O que compromete não é a sua presença, mas sua onipresença. A utilização de fóruns político-pedagógicos para exposição político-partidária por prosélitos faz sobrepor o individual ao coletivo, numa nítida confusão entre direito de falar e interesse em falar.
Faz parte da formação política do cidadão ter a competência de avaliar os fóruns. Se, por exemplo, o espaço de uma reunião pedagógica é de fato o espaço adequado para se problematizar algumas questões, da mesma forma que se deve avaliar se o legítimo espaço de uma reunião sindical, em outro exemplo, é legitimo para que as bases discutam se as pegadinhas do João Kleber são reais ou forjadas ou se a Serena deve ou não ficar com o Rafael na novela das seis. Em suma: há fóruns e fóruns. Conhecê-los e exercer o papel de cidadão dentro do escopo de cada um só aumenta o capital político do sujeito. Ignorar isso só lhe garante o título de panfletário.
Os participantes de um processo educativo não podem esquecer que o individuo empírico nem sempre ocupa o mesmo lugar quando fala, mas sim circula nas diversas posições de sujeito social, sendo poliglota na própria língua. Isso é que garante um sujeito semanticamente normal.
Devemos nos perguntar ao usar a linguagem: “Falo de que lugar? De professor, de diretor, de pai ou de sindicalista?” A incapacidade de se localizar em uma posição discursiva que pressupõe um posicionamento no imaginário social caracteriza a alienação que muitas vezes pontua o próprio discurso do sujeito que grita contra ela. Alienar é (de novo a etimologia) “perder os sentidos, abrir mão deles”. O diretor que não tem a capacidade de se reconhecer como parte do sistema educacional e historicizar o discurso da administração da qual faz parte não terá desejo algum em possibilitar o PPP em sua escola. Se essa incapacidade de trabalhar o deslocamento de subjetividade for muito torturante para si, o servidor deve disponibilizar o seu cargo de direção por ética, o que é desejável, ou, no mínimo, para que o seu equilíbrio psíquico seja mantido. Muitas posições discursivas são incompatíveis e excludentes e podem deixar o sujeito dividido entre duas verdades.
Uma outra questão que envolve o político é o senso coletivo de plausibilidade e razoabilidade. Como ente político, é necessário exercitar as ações nos limites das contingências e, novamente através dos fóruns específicos, demandar as necessidades. Dito de outra forma: é preciso demandar as necessidades nos fóruns próprios e ter a compreensão de que quase nunca a factibilidade tem a mesma velocidade do querer social. É preciso cobrar do poder público com razoabilidade, sem esquecer a história que levou à situação atual.
Ainda na questão do político, chamamos a atenção para o hífen que liga lingüística e organicamente a palavra político à palavra pedagógico. Essa ligação aponta para a necessidade da garantia da inter-relação coletiva que vise sempre o sujeito precípuo da educação: o aluno. O político não pode jamais perder a dimensão da finalidade pedagógica nem sobrepor-se a ela, senão as práticas atrofiam. Mas e o que entendemos por pedagógico?


Pedagógico

Para manter o paralelismo no texto, Pedagogia significa “dar direção a”. No âmbito da educação, trata-se evidentemente de dar direção aos processos educativos significativos. Por extensão, pedagógico significa direcionador. A pedagogia, em um sentido estrito, está ligada às suas origens na Grécia antiga. “Pedagogo” era o escravo que levava a criança para o local da relação ensino-aprendizagem. Não era um instrutor, mas um condutor, alguém responsável pela melhoria da conduta geral do estudante, moral e intelectualmente.
Em nossa definição operacional, para que algo seja pedagógico, esse algo pressupõe uma definição de diretrizes que viram ações e que conduzam a uma alteração de realidade, aquela mesma alteração de que falamos antes, um produto de um desejo coletivo. Se na discussão de um PPP não se define um referencial de conjunto para a caminhada em busca da mudança da realidade desejada, embasada em uma “intencionalidade compartilhada” (Severino 1992, p. 80), esse projeto pode ser tudo, menos pedagógico.
A necessária definição das diretrizes que caracterizarão os Marcos Filosóficos e, por conseqüência, os Marcos Operativos de um PPP (cf. Vasconcellos op. cit.) devem ser organicamente ligada com a dimensão política, o que é, como vimos, marcado na linguagem pelo hífen. Essas diretrizes podem e devem ser sistematizadas por uma equipe diretiva, mas com a garantia do espaço da discussão política global para que o coletivo seja preponderante.


À guisa de conclusão: Amarrando os conceitos

Retomando nossos conceitos operacionais, podemos definir Projeto Político-Pedagógico, com algumas alterações, pois nem sempre o todo é a soma das partes. O Projeto Político-Pedagógico é um empreendimento planejado que consiste num conjunto de atividades inter-relacionadas e coordenadas (a programação), com o fim de alcançar objetivos específicos considerando a realidade diagnosticada (o diagnóstico) num tempo presente na escola para que essa realidade possa ser modificada num tempo futuro através da transformação de idéias fundamentadas na análise e discussões coletivas (o marco referencial) em ações procedimentais, que devem ser avaliadas continuamente.
Ao diretor da escola cabe a função primordial de mediar as demandas da escola, por um lado, e as do macro-sistema, por outro. Assim, a grande tarefa do diretor não é fazer a escola funcionar, mas fazê-la funcionar pautada num projeto coletivo (Vasconcellos op. cit., p.61).
Como qualquer projeto, o PPP se depara com riscos. Riscos como o imediatismo que elimina a construção teórica, o academicismo que se limita a ela, o comodismo dos que não querem a desacomodação numa “paralisia paradigmática” (Resende 1995), o perfeccionismo que busca a precisão num mundo impreciso da arena educacional, a falta de esperança na instituição que desacredita o fazer possível de antemão, do nominalismo que busca filiar a escola a uma concepção corrente, as relações de poder (cf. Foucault 1979) que congelam os avanços, entre outros. Discorrer sobre esses riscos merece um outro artigo, assim como o desdobramento operacional da elaboração do PPP também o merece. Mas o maior risco é o risco de não correr esses riscos em busca de uma escola mais democrática, mas acessível, mais significativa, mais plural. O risco de não correr riscos é um risco que não podemos correr.

*Sérgio Augusto Freire de Souza - Universidade Federal do Amazonas -Subsecretário Municipal de Educação e Cultura de Manaus - sergio_freire@uol.com.br


Referências Bibliográficas

Althusser, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença-Martins Fontes, 1974.
Bourdieu, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
Freire, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
Freud. S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Foucault, M. Microfísica do poder. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal,1979.
Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. 6 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
Resende, L. “Paradigma relações de poder-projeto político-pedagógico: dimensões indissociáveis do fazer educativo”. In: Veiga, I. (org). Projeto político-pedagógico da escola: uma construção possível. 16 ed. Campinas: Papirus, 1995.
Severino, J. “O diretor e o cotidiano na escola”.In: Idéias (12). São Paulo: FDE, 1992.
Thurller, M. Inovar no interior da escola. Porto Alegre: Artmed, 2001.
Vasconcellos, C. Coordenação do trabalho pedagógico: do Projeto Político-Pedagógico ao cotidiano da sala de aula. São Paulo: Libertad, 2002.


Referência:

SOUZA, S. A. F. "Projeto Político-pedagógico:historicizando conceitos para deslocar práticas". Disponível online em . Acessado em inserir a data de acesso.

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